
A exuberância da folhagem me permitiu chegar sem ser visto ou ouvido ao colóquio que mantinham o Nórfu (Onofre nos documentos) e um outro cujo nome esqueci.
Enquanto o Nórfu preparava um “palheiro”, picando o fumo miudinho com o canivete, seu companheiro de diálogo amolava a enxada com uma lima velha, preparando o instrumento e descansando, física e mentalmente, do complexo trabalho da capina de café.
Diga-se, de passagem, que não é qualquer um sem noção que logra sucesso em encabar uma enxada no ângulo correto, num cabo de guatambu (se encontrar a preciosa madeira), no peso adequado, amolá-la, e manobrá-la do jeito certo, para que corte o mato sem esforço, não fique enterrando no chão o tempo todo, e não canse os braços em demasia por causa do peso. Não senhor, isso é assunto complexo, para profissionais, e aprendido à custa de tempo e sofrimento caloso nas mãos.
Lá vou eu desviando o assunto para as coisas velhas da lavoura, por que esse assunto de enxada é coisa do passado, luxo de antigamente onde a mão de obra era barata, o ar era limpo e o sexo era considerado sujo.
Cortando o fumo nas grossas mãos, o Nórfu falava para o companheiro sobre o terrível pesadelo que tivera naquela noite.
O demônio, sim, em pessoa, o tinhoso, o esquerdo, o asmodeu, o canhoto, o cramunhão, o satanás, o belzebu, Lúcifer o arcanjo caído.
O diabo, enfim, cutucava o Nórfu com o tridente, que numa corruptela de forcado, é chamado aqui de fôrca. Fosse a ferramenta uma fôrca dos dentes curvos, como garras, para puxar feno ou algodão secando no terreiro, levaria o sugestivo nome de “gadanho”.
“Pois é sô Inácio (fica bom este nome), eu tava todo enroladinho nuns pano amarrado, na beradiquinha dum precipíçu, e o dêmo mi carcava a fôrca na bunda pra módi d’eu caí”.
“E aí Nórfu?”
“E aí qui eu caí. Espenquei na goela do buracão dos môrto mai graças a nossinhor Jesus Cristo acordei , bufando, na minha cama, zóião arregalado, todo enrolado no lençór”.
“Foi aí que eu si dei conta do porquê do sonho. Fui vê o que tava me cutucano a bunda, e era a minha lima de amolá enxada”.
Felizmente o Nórfu, além de valente capinador, é um exímio interpretador de sonhos, não sei se de linha freudiana ou jungiana, esta com toda a sua peculiar simbologia.
Esse cidadão, que foi dormir sem tomar banho, usando a roupa do dia anterior, com a lima no bolso, e certamente também o fumo e o canivete, positivamente bêbado, é um tipo de trabalhador rural que vive só.
Eventualmente tem a companhia de outro homem, irmão, parente, ou só amigo.
Invariavelmente, tem um cachorro.
E como é forçado a lavar e costurar as próprias roupas, o que geralmente faz mal e porcamente, e a cozinhar para si, também sem muita habilidade e higiene, diz-se dele que “queima lata”.
Veio daí minha compreensão da sociedade conjugal primitiva, onde ele entra com a força bruta, a intrepidez na obtenção de recursos para o lar, e ela entra com a roupa lavada, a comida, os cuidados com a prole, e o sexo.
É isso aí, o sexo romântico na vida dessas mulheres cansadas, atarefadas e sobrecarregadas tem muito pouco de prazer, e muito de obrigação.
“Cê vai mi usá hoje Zé?”
“Não? Que bom, então vô lavá só os pé!"
Antonio Gomes
Gostei muito.
ResponderExcluirGostei da interpretação do sonho, que me pareceu Freudina(não sou psicanalista, mas sou analisada), e gostei de relembrar parte da minha vida que também foi numa fazenda de café.